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Projeções poéticas: influência do advento das técnicas da iluminação, do cinema e do vídeo sobre a cênica moderna e contemporânea.

Luciana Paula Castilho Barone [1]

 

Resumo: Este artigo apresenta um recorte histórico sobre as influências sofridas pela prática teatral com o advento das tecnologias da iluminação elétrica, do cinema e do vídeo, procurando identificar, na hibridização das diferentes linguagens, as novas possibilidades de materialização de anseios estéticos que estas tecnologias trouxeram ao teatro, favorecendo o nascimento de poéticas cênicas que se servem de diferentes mídias, em suas formulações narrativas, a exemplo da obra do encenador canadense Robert Lepage.

 

Palavras chave: encenação; teatro e tecnologia; teatro de imagens; Robert Lepage.

 

O avanço tecnológico nem sempre é recebido com euforia no campo das artes. O desenvolvimento de novas técnicas, mídias e suportes vem, não raramente, acompanhado de um espírito ameaçador aos modelos de representação e de produção em vigência numa determinada época. Assim, o advento da fotografia ameaçou de morte a pintura. A popularidade do cinema ameaçou os produtores que temiam a evasão do público dos teatros. A profusão da internet ameaçou o mercado editorial. E o caçula MP3 chegou aterrorizando gravadoras e produtores musicais.

 

Por outro lado, as técnicas nascentes instigam a criação de novas linguagens e meios de produção artística. Como comprovou o decorrer da história, a fotografia não aniquilou a pintura, mas estimulou técnicas de representação pictórica não fundadas no realismo vigente quando de seu nascimento. O cinema, equivocadamente condenado à morte por seus próprios criadores , coexiste com as artes cênicas ao vivo há mais de um século, tendo sido por elas incorporado. As publicações em papel continuam circulando pelas livrarias, sendo, inclusive, comercializadas pela web. E o mp3 vem estimulando novas formas de relação comercial, estreitando a distância entre o público e os artistas independentes dos contratos centralizadores das grandes gravadoras.

 

No campo das artes cênicas, o advento de novas técnicas nos séculos XIX e XX possibilitou a materialização de novas formas representacionais que correspondiam a formulações estéticas nascentes no seio das vanguardas européias. A revolução tecnológica do final do século XIX encurtou a distância entre países, facilitando as tournées de espetáculos e o conseqüente intercâmbio das idéias que emergiam em torno do fazer teatral. Como comenta Jean-Jacques Roubine, “trata-se de um fenômeno de difusão que não seria correto considerar restrito aos produtos, às obras. Ele é, na verdade, uma conseqüência de uma divulgação análoga de teorias, pesquisas e práticas” (ROUBINE, 1998, p.19).

 

A prática naturalista vigorava na cena européia do final daquele século que ia assistindo ao abandono gradual do textocentrismo, e ao desenrolar da chamada era dos encenadores, que se estenderia por todo o século seguinte. Neste contexto, o advento da iluminação elétrica veio a contribuir com a materialização cênica de uma série de proposições estéticas que ansiavam por formas mais simbólicas de representação e menos ligadas ao mimetismo naturalista, despertado pelo diretor Antoine, no Théâtre Libre de Paris (1887), explorado por Otto Braham no Feie Bühne de Berlim (1889) e por Constantin Stanislaviski e Vladimir Nemirovitch-Danchenko, fundadores do Teatro de Arte de Moscou (1898).

 

Contribuições da iluminação elétrica para a estética do teatro simbolista

 

As lâmpadas a gás, predominantes nos teatros europeus desde o início do século XIX, ofereciam pouca luminosidade e grande limitação em termos de operação. A criação da lâmpada elétrica, em 1879, atribuída a Thomas Edison, levou à reforma das instalações de inúmeras salas européias, favorecendo a experimentação de diálogos inovadores entre a cena e a luz, possibilitados pelas facilidades técnicas que o novo recurso oferecia.

 

Inicialmente utilizada para acentuar o ilusionismo buscado pelas montagens naturalistas, a iluminação apresentava-se fiel ao espaço representado. Mas seu desenvolvimento técnico, aliado a novos anseios estéticos, de ruptura com a representação fundada na imitação da natureza, possibilitou experimentações significativas, que viriam a revolucionar esta utilização “mimética” da luz.

 

A primeira artista a introduzir cores na iluminação cênica foi a dançarina norte americana Loie Füller, que também substituiu o cenário figurativo pela divisão espacial gerada pelos recursos da iluminação. Este redimensionamento da representação espacial do final do século XIX, promovido pela técnica da iluminação viria a influenciar fortemente os simbolistas e seus conceitos para a arte cênica.

 

O manifesto simbolista, publicado em 1886, sugeria que a subjetividade, a espiritualidade e as forças internas representavam uma verdade mais profunda, em relação à objetiva observação de aparências. Mallarmé se opunha ao dominante teatro realista, clamando por uma poética teatral que evocasse os profundos mistérios humanos e do universo. Para o poeta, o drama deveria ser um rito sagrado em que o poeta dramático revelasse as correspondências entre os mundos visível e invisível, através da sugestiva força de sua linguagem poética. As peças simbolistas deveriam apenas revelar, indiretamente, as profundas verdades da existência, conhecidas instintiva ou intuitivamente.

 

A dramaturgia simbolista deveria ser levada à cena segundo as reformulações estéticas que ela exigia. As imagens visuais não se escravizavam às indicações dramatúrgicas, emergindo da livre criação de encenadores como Paul Fort (que fundou o Théâtre d’Art, em 1890) e Lugné-Pöe (fundador do Théâtre de L’Oeuvre, em 1892), que priorizavam a abstração cenográfica e a estilização da interpretação.

 

Mas os expoentes das modificações estéticas causadas pelo desenvolvimento da iluminação na cena simbolista foram o suíço Adophe Appia (1862-1928) e o inglês Edward Gordon Craig (1872-1966). Ambos os artistas faziam separadamente experimentos técnicos, com os últimos equipamentos de iluminação até então desenvolvidos, buscando uma linguagem mais abstrata e dinâmica para a iluminação cênica.

 

Appia idealizava a iluminação como elemento que enfatizasse o ator em cena. Para ele, que desenvolveu um projeto de iluminação para 18 óperas de Wagner (The Staging of the Wagnerian Drama, 1895), a iluminação consistia numa melodia musical, que deveria ser marcada pelo ritmo estabelecido pela trilha sonora.

 

Combatente da bidimensionalidade cenográfica realista, Appia propunha uma variação na iluminação que favorecesse a tridimensionalidade do espaço e realçasse a movimentação dos intérpretes, criando maior dinamicidade ao movimento. Para tanto, classificou três tipos de iluminação: uma mais difusa (a geral), outra que moldasse as sombras e outra, de efeitos, elaborada a partir de pinturas no cenário. A partir de variações de cor, intensidade e direcionamento da luz, obter-se-ia uma tridimensionalidade inexistente no teatro ilusionista.

 

Além disso, vislumbrava uma iluminação regida pela música que salientasse os atores, cujos movimentos também deveriam ser pontuados pela música. O movimento dinamizado, marcado pela condução rítmica já apontava, em Appia, uma formulação cênica não linear, mais próxima do dinamismo imagético cinematográfico do que da captação mais estática da natureza fotográfica.

 

Craig, buscando uma atmosfera simbólica, idealizava a sugestão de realidade. Utilizava-se, para tanto, das mais diversas possibilidades da luz, investindo nas cores e na criação de atmosferas. A movimentação da luz, para ele, relacionava-se diretamente à movimentação dos atores.

 

Valorizando a simplicidade e a unidade conceitual, Craig propunha a harmonização, pelo diretor, de todos os elementos da produção, como a iluminação, a trilha sonora, o cenário, a maquiagem, o texto, etc. Suas propostas estendiam-se assim a diversos elementos da encenação. No campo da dramaturgia, não se prendia à autoridade das rubricas textuais, favorecendo o simbolismo. Suas propostas cenográficas eram compostas de estruturas móveis que podiam transformar o espaço durante a performance, em detrimento da cenografia naturalista. No campo da interpretação, renegou o egocentrismo e emotividade da interpretação naturalista, formulando a teoria das super-marionetes que simbolizariam melhor do que os intérpretes as personagens trazidas à cena.

 

A reformulação da estética da iluminação também foi tema dos escritos de Antonin Artaud (1896-1948). Nascido no ano da publicação do Manifesto Surrealista, Artaud era favorável à força política daquele movimento, do qual se desligou quando da entrada de seu líder, André Breton, para o Partido Comunista, em 1927. Artaud ansiava por uma luz provocadora, que incitasse os sentidos do espectador:

 

A aparelhagem de luz atualmente utilizada nos teatros já não é suficiente. Estando em jogo a ação especial da luz sobre o espírito, há que procurar efeitos de vibrações luminosas, novas maneiras de espalhar a iluminação em ondas, ou em toalhas de luz, ou como uma fuzilaria de flechas de fogo. A gama de cores dos aparelhos usados hoje em dia precisa ser inteiramente revista.

 

Para produzir qualidades especiais de tons, deve-se de novo introduzir na luz um elemento de tenuidade, de densidade, de opacidade, com o objetivo de produzir o calor, o frio, a cólera, o medo, etc. (ARTAUD, 1996, p.93)

 

O advento da iluminação elétrica, em seu jogo com os demais elementos trazidos à cena pelos palcos simbolistas, proporcionou a materialização do irreal, a busca pela verdade do sonho, a representação da subjetividade, perseguidas pelo movimento, e encontradas em outras vanguardas do modernismo. Como bem coloca Jean-Jacques Roubine,

 

O debate que acompanha toda prática teatral do século XX [que] coloca em oposição, em diversos planos e sob denominações que variam ao sabor das épocas, a tentação da representação figurativa do real (naturalismo) e a do irrealismo (simbolismo), não seria tão intenso, nem tão fecundo, sem dúvida, se não fosse sustentado por uma revolução tecnológica baseada na eletricidade. (ROUBINE, 1998, p.23).

 

Neste contexto, a Bauhaus alemã chegou a apostar na autonomia da iluminação no campo representacional, com o espetáculo Reflect Light Compositions, apresentado em sua Primeira Semana de Artes, de 1923. O espetáculo, segundo Rosângela Leote Souza, era um

 

(...) experimento realizado pelos alunos Ludwig Hirschfeld-Mack e Kurt Schwerdfeger que produzia projeção de luzes de várias cores através de vidro, segundo uma seqüência escolhida com requintes de gradação de intensidade luminosa e acompanhadas pelo piano (Hirschfeld-Mack), criando um cinetismo na composição não-figurativa que só muitos anos mais tarde viria ser objetivo da Op Art (SOUZA, 1994, p. 87)

 

O cinetismo desenvolvido por estas tendências, já experimentado e verticalizado pela arte cinematográfica de então, aponta para a busca do movimento dinâmico na representação cênica. A pesquisa técnica, em prol do aprimoramento rítmico-imagético cênico já se mostrava fértil nesse período e se intensificaria, anos depois, com o advento dos sintetizadores de vídeo que transformaram radicalmente a linguagem imagética e, em última instância, a multimediática teatral. A projeção de luzes, a partir dos simbolistas, reformulou imagens próprias do palco para, num momento posterior, aprimorar-se em projeções imagético-luminosas que ampliariam extensamente as possibilidades do espaço representado em cena, assim como o campo sígnico dos elementos em relação, no palco contemporâneo. O conceito do multimediático nascia, assim, com a luz simbolista e sua importância representativa, integrando, ao lado dos outros elementos cênicos, a unidade conceitual necessária para a formulação do campo sígnico dos espetáculos que formulam sua linguagem a partir dos múltiplos signos cênicos de que se utilizam.

 

O nascimento do cinema e suas relações com a estética do teatro

 

A invenção do cinematógrafo, pelos irmãos Lumière, e sua primeira projeção no Grand Café, em Paris (1895), marcariam o início de uma constante reformulação de paradigmas estéticos da arte cinética. As primeiras projeções das fotografias animadas apresentavam planos de seqüência sem intenção de narrativa. Imagens de bombeiros trabalhando, de um jardineiro ou de um bebê sendo alimentado funcionavam mais como um marketing do próprio suporte. Georges Meliés, encantado com as projeções dos irmãos Lumière, adquire seu cinematógrafo e dá início a suas próprias experimentações, introduzindo a narrativa na sétima arte. O início do século XX assiste à busca de maior dramaticidade na produção desta arte e com Griffith e sua inserção da narrativa espacial (comportando narrativas paralelas), ao nascimento das regras do cinema clássico.

 

Essa nova narrativa que surgia rapidamente foi adotada pela cena teatral, uma vez que seu mais novo concorrente na área do entretenimento começava a apresentar ao público uma nova forma de percepção da representação artística:

 

Ele [o cinema] oferece ao espectador uma nova forma de perceber o espaço, o espaço no qual se desenvolve a história do filme. O ponto principal é a mobilidade deste espaço, a multiplicidade dos ângulos de visão, a rapidez com que se passa de um plano a outro sem se perder a visão global: pode-se passar de um detalhe a outro e vice-versa. Era impossível a linguagem cinematográfica não influir no Teatro e não produzir polêmicas. (MANTOVANI, 1989, p. 48)

 

Além dos fatores estéticos, o cinema representava, de certa forma, uma ameaça para o teatro, pois o número de espectadores teatrais decrescia proporcionalmente ao crescimento de espectadores cinematográficos: “O Cinema rapidamente provoca mudanças ao nível social e na percepção do público, atingindo diretamente o teatro. Lembramos que no início do século o Cinema já era uma indústria e rapidamente atingiu a massa” (Idem.). A multiplicidade cinematográfica viria rapidamente a ser adotada pela arte cênica, não apenas nas mudanças espaciais e temporais que ajudou a provocar no teatro, mas diretamente, com a adoção de imagens filmadas em espetáculos teatrais. Ivan Goll, em sua montagem de Matusalém exemplifica esta adoção já na década de vinte (ESSLIN, 1978, p. 24).

 

No decorrer da mesma década, Erwin Piscator explorou a projeção cinematográfica como elemento documentário de seu teatro político, fazendo jogar a realidade representada em cena com a realidade documentada pela película. A incorporação do cinema pelo teatro agregava novas possibilidades representacionais às artes cênicas, materializando os anseios estéticos que se faziam emergentes, no exemplo de Piscator, provocando o olhar crítico da platéia, frente à imagens documentárias que inseriam a realidade histórica nos palcos do pós-guerra.

 

Por seu lado, o cinema, em busca de sua identidade artística, revelava uma ambígua relação com o teatro. O advento do som no cinema, trouxe à tona, no final da década de 20, a discussão sobre as especificidades da sétima arte em relação às artes da cena. Robert Stam, ao relatar diversificados pontos de vista sobre os méritos do cinema sonoro e do cinema mudo, nos remete à polêmica que se estabelecia entre as duas formas expressivas: enquanto o americano Gilbert Seldes acusava o cinema sonoro “de ser uma regressão aos modos teatrais”, o francês Marcel Pagnol acolhia o som, por considerar o filme falado como “a arte do registro, preservação e difusão do teatro”; Artaud alertava que o som poderia “levar o cinema à adoção de convenções ultrapassadas”, o que os russos Eisenstein, Alexandrov e Pudovkin queriam combater, conclamando “ao uso não sincronizado do som, afirmando que a inclusão de diálogos poderia restabelecer a hegemonia de métodos antiquados e promover uma enxurrada de ‘performances fotografadas de tipo teatral’” (in STAM, 2006, p. 76).

 

As primeiras teorizações sobre o cinema tinham como parâmetro, inicialmente, o teatro e sua linguagem, e, posteriormente, a relação do cinema com as demais artes, como exemplifica Fernanda Martins, em seu artigo “Impressionismo Francês”:

 

A Ricciotto Canudo atribui-se o papel fundador da teoria cinematográfica. Inicialmente ele sustentara a idéia de um ‘teatro cinematográfico’, a saber, um teatro novo, contemporâneo, mas se convenceu de que o cinema era uma ‘arte plástica em movimento’ e assumiria a posição de expressão última no rol das artes. Após ‘La naissance d’un sixième art. Essai sur le cinématographe”, datado de 1911, Canudo escreveu ‘La Leçon du cinema’, em 1919, em que anunciou a então conhecida ‘sétima arte’. A fortuna crítica dessa noção se deve, todavia, ao Manipheste des sept Arts, elaborado três anos mais tarde , no qual o autor considera o cinema como o lugar de fusão entre as artes do tempo e as do espaço” (MARTINS in MASCARELLO, 2008, pp. 96-97).

 

Buscava-se então, a essência do cinema, através de suas peculiaridades técnicas e de como elas poderiam ser transpostas para a linguagem, ao mesmo tempo em que os críticos da cultura de massa negavam a natureza artística do suporte cinematográfico. Os efeitos sociais dos mass media começavam a ser discutidos, através da função do cinema. Por outro lado, a prática cinematográfica começava a explorar as propostas estéticas das vanguardas nascentes, nas formulações artísticas para o novo suporte que, a história mostraria, se perpetraria como a sétima arte.

 

As experimentações cinematográficas expressionistas introduzem a estilização da dimensão temporal na imagem produzida mecanicamente. O expressionismo alemão foi o primeiro a pensar a codificação psicológica na imagem cinematográfica, remetendo-se à atividade intelectual da recepção, ou seja: introduzindo a estilização, o expressionismo criava recursos de linguagem que, através da intelecção do espectador, expressava aspectos subjetivos da imagem apresentada.

 

A concepção de montagem de Eisenstein nascia com sua experiência como diretor teatral do Proletkult, criado em 1917 , em combate ao teatro burguês, em sua defesa de um teatro baseado em estímulos “sensoriais e emocionais” (in MASCARELLO, 2008, p.120). Eisenstein declarou dever tal concepção “’primeiramente e antes de mais nada aos princípios básicos do circo e do music hall’, pelos quais tinha paixão desde a infância’” (BERTHOLD, 2001, p. 523).

 

O recurso cinematográfico do close-up possibilitava uma aproximação entre o espectador e a intimidade da personagem, ainda inéditas à experiência teatral. Margot Berthold, atribui à proximidade possibilitada pelas câmeras, às experiências intimistas que eclodiram na prática teatral européia após 1945:

 

Numa sala pequena e sobre um palco nu, os atores encaravam a platéia quase tão diretamente quanto a câmera e o microfone do estúdio (...) no teatro de câmera (...) destaca-se a emoção, a simplicidade e, se tanto, atenua-se a impostação do texto; o ator não usará maquiagem, e a interpretação será intensiva, em vez de extensiva. Esta é a origem da economia dos meios, baseada na constante consciência do close. (BERTHOLD, 2001, p. 524)

 

Assim, as experiências teatral e cinematográfica se contaminavam mutuamente, fosse pela apropriação ou transposição de técnicas, fosse pela rejeição de seus paradigmas, explorando novas possibilidades estéticas, provocadas pelos recursos narrativos e visuais que o cinema trouxe à cena.

O vídeo e suas contaminações sobre as artes performativas

 

Com o aparecimento do vídeo, na década de 50, a produção e utilização da dimensão espaço-temporal imagética sofrem transformações radicais. A captação do movimento pelo vídeo permitiu a passagem entre o imóvel e o móvel, repercutindo conseqüências para a recepção da imagem, tanto no campo cinematográfico (ver BELLOUR, 1997, p.14), quanto nas práticas performáticas que se apropriariam do suporte que nascia. O vídeo contaminava a enunciação cinematográfica e, com o surgimento da vídeo-arte, se configuraria como suporte e tema do fazer artístico.

 

Antes mesmo do lançamento dos equipamentos portáteis (em 1965, pela Sony) Wolf Vostell e Nam June Paik - ligados ao movimento FLUXUS, idealizado em 1962 por George Maciunas como “Teatro ‘neobarroco’ de mixed-media” (GLUSBERG, 1987, p. 38) - já questionavam a imagem eletrônica e seu suporte televisivo em seus trabalhos. A materialidade televisiva foi tema para ambos.

 

A ameaça da colocação do espectador como receptáculo alienado, dominado pelo “mass-media” levou Wolf Vostell a atacar (com tiros de armas, invólucros de arame ou cimento) monitores da nova mídia. Nam June Paik trabalhava a desmaterialização pela desconstrução da imagem, através de sua própria estrutura imaterial, criando uma mensagem também imaterial que veiculava “feixes de elétrons reajustados a partir de interferência eletromagnética.” (SOUZA, 1994, p. 44).

 

A performance, herdeira dos surrealistas e dos dadaístas, já explorava a interação entre diversas artes, desde Untitled Event (1952), em que John Cage reuniu 5 artes distintas (teatro, poesia, pintura, dança e música), formando uma sexta arte, em que imperava o acaso e a indeterminação. Em 1959, o 18 happenings in 6 parts de Alan Kaprow, em Nova York, inaugura o happening, integrando artes plásticas, teatro, art-collage, música e dança. A integração do happening, associada à importância da movimentação física do artista, frisada na actionn painting de Jackson Pollock foram fundamentais para a aproximação entre as artes performativas e as plásticas que se assistiria nas décadas de 70 e 80. A sistematização das formas corporais e de sua inter-relação com o espaço e com a platéia, apontada pela body art também fomentou a abordagem plástica da cena, culminando no abandono do verbal.

 

Com a criação do primeiro sintetizador de vídeo, no final da década de 60 (por Nam June Paik e pelo engenheiro eletrônico Shuya Abe) a performance art passa a incorporar o suporte videográfico. O aumentativo possibilitado pelas lentes das câmeras e sua conseqüente fragmentação da representação corporal, passa a ser explorado tanto pela videoperformance e vídeo-arte, quanto pela cinematografia. O novo paradigma representacional interfere nas práticas interpretativas, seja diante ou não das câmeras. Ao importar o aparato videográfico para dentro dos teatros, a cênica contemporânea, que já herdara do cinema as narrativas imagéticas e múltiplas, incorpora a nova linguagem, explorando suas possibilidades representativas, em jogo com os demais elementos do espetáculo, em busca de uma narrativa híbrida, que possibilite uma forma mais sensorial à recepção do evento teatral.

A cena híbrida e seus suportes: o exemplo de Robert Lepage

 

É neste contexto que o franco canadense Robert Lepage dá início a sua carreira multifacetada. Entre 1975 e 1978 estudou teatro no Conservatório de Arte Dramática do Quebec, onde chegou a ser considerado como um "jack of all trades” (CHAREST, 1999, p.06), que não era realmente bom em nada específico. Para o jovem estudante, luz, imagens, encenação e cotidiano já constituíam elementos preciosos da elaboração cênica. Como coloca Rémy Charest: “Quando se formou, ele simplesmente não parecia encaixar-se em nenhuma categoria, então criou a sua própria” (Ibidem).

 

Sua “categoria” foi-se formatando pelos palcos na década de oitenta, através da exploração do jogo entre diferentes recursos como objetos, imagens projetadas, sonoridades e espaço. Em Vinci, espetáculo solo criado e interpretado pelo próprio Lepage, em 1986, já se assiste ao jogo entre imagens projetadas e cena ao vivo. A projeção de palavras localiza geograficamente o espectador, conduzindo-o às diversas cidades visitadas pelo protagonista Philippe, em sua viagem iniciática. Explorando a projeção de sombras, Lepage insere o espectador no espaço ficcional, ao criar uma cena em que se dirige à platéia, por detrás do telão de fundo do palco, como um guia à frente do grande ônibus de passeio em que transforma o teatro. Vemos apenas a silhueta do ator e de um espelho retrovisor, projetadas na tela cenográfica, transformada num grande pára-brisa à frente dos espectadores, turistas desta viagem poética.

 

Em Agulhas e Ópio (apresentada no Brasil, pelo Festival de Teatro de Curitiba de 1998), a tela de projeção ganha mobilidade, possibilitando maior interação entre o ator e as imagens luminosas. Assim, o ator, interpretando Jean Cocteau, salta do topo de um edifício, num mergulho vertiginoso, possibilitado pela imagem em travelling de um prédio, de baixo para cima, que em jogo com os movimentos acrobáticos do ator - suspenso no ar por cordas presas ao urdimento -, simula a queda do personagem, que some de cena graças à rotação da tela, que o oculta ao final do salto. Neste espetáculo, além de explorar a projeção de objetos manipulados ao vivo, Lepage traz o trompetista Miles Davis à cena, através da projeção da sombra do ator, do instrumento musical e da droga que o personagem injeta nas veias. Trechos documentários cinematográficos também são projetados, inserindo Juliette Gréco no palco.

 

O jogo entre a cena ao vivo e a imagem que se antepara no cenário possibilita a formulação de diversos signos cênicos que criam uma narrativa híbrida, composta por palavras, imagens, sonoridades. Utilizando de diferentes suportes para a criação de sonoridades, sejam instrumentos ou vozes para música ou sonoplastia criada ao vivo, sejam microfones que amplificam a valorização de aliterações textuais pelo ator, a sonoridade compõe, em jogo com os demais elementos, esta narrativa que envolve os diferentes sentidos do espectador. Como comentam Chantal Hébert e Irène Perelli-Contos (2001, p.88):

 

O som torna-se (…) um elemento-chave do teatro de imagens, ainda que o espectador e o teatrólogo não prestem sempre atenção suficiente a ele (…) O som é bem mais que um efeito ornamental; ele responde a uma necessidade, torna-se uma necessidade formal, um dos elementos base do pensamento e da escritura cênica (tradução livre).

 

Esse pensamento multifacetado de Robert Lepage possibilita-o transitar por diferentes linguagens, seja apropriando-se delas para a configuração de uma autoria propriamente cênica (frequentemente denominada “teatro de imagens” pela literatura canadense), seja na exploração da linguagem em seu suporte de origem, como é o caso dos filmes por le dirigidos, a partir de meados da década de 90.

 

As pessoas frequentemente se referem ao aspecto cinematográfico de meu trabalho e todos que me encorajaram a fazer cinema, o fizeram como se essa fosse minha mídia par excellence, devido às qualidades visuais de minhas peças. No entanto, eu vejo o cinema como um meio de escrita e de som, enquanto, para mim, o rádio é o real meio da imagem, porque a audiência tem que criar suas próprias imagens. (LEPAGE in CHAREST, 1999, p.122, tradução livre)

 

Na tela ou no palco, esse criador de imagens que é Robert Lepage dá asas à imaginação, servindo-se, para tanto, dos suportes que melhor traduzam a poesia que quer trazer à público. Desde as câmeras de segurança de que se utilizou em sua versão de Hamlet (em Elsinore, espetáculo solo de 1995, Robert Lepage contracena diversas vezes com sua própria imagem projetada, interpretando muitos dos papéis do original shakespeareano), passando por projeções de sombras, objetos ou cinematográficas, até sua experiência na direção de cinema, Lepage funde a fronteira entre as linguagens para criar uma poética híbrida, em diálogo com os diversos sentidos do espectador.

 

REFERÊNCIAS:

 

ARTAUD, Antonin. O teatro e seu duplo. Lisboa, Portugal: Editora Fenda, 1996.

 

BELLOUR, Raymond. Entre-Imagens. Campinas: Papirus, 1997.

 

BERTHOLD, Margot. História mundial do teatro. São Paulo: Perspectiva, 2001.

 

CHAREST, Remy. Connecting Flights: Robert Lepage in conversation with Remy Charest. New York: TCG Books, 1999.

 

COHEN, Renato. Performance como linguagem. São Paulo: Editora Perspectiva, 1989.

 

____. Work in Progress na cena contemporânea. São Paulo: Editora Perspectiva, 1998

 

ESSLIN, Martin. Artaud,.São Paulo: Cultrix: Ed. da Universidade de São Paulo, 1978.

 

GLUSBERG, Jorge. A Arte da Performance. São Paulo: Perspectiva, 1987.

 

GUSMÃO, Rita de Cássia Santos Buarque de. Videografia e teatro: presença e influência da videografia na arte cênica ao vivo. Campinas: Editora da UNICAMP, 2000.

 

HÉBERT, Chantal e PERELLI-CONTOS, Irène. La Face cachée du Théâtre de l’image. Quebec: Les Presses de l’Universitée Laval, 2001.

 

______ (org.). Théâtre, Multidisciplinarité et Multiculturalisme. Quebec: Nuit Blanche Éditeur, 1997.

 

MANTOVANI, Anna. Cenografia. São Paulo: Editora Ática, 1989.

 

MASCARELLO, Fernando. História do cinema Mundial. 3a. Edição. Campinas: Papirus Editora, 2008.

 

PISCATOR, Erwin. Teatro Político. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968.

 

ROUBINE, Jean Jacques. A linguagem da encenação teatral. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.

 

SOUZA, Rosângela da Silvas Leote de. Da Performance ao vídeo. Campinas: Editora UNICAMP, 1994.

 

STAM, Robert. Introdução à teoria do cinema. 2a. Edição. Cempinas: Papirus Editora, 2006.

*originalmente publicado nos Anais do 1o. Encontro do Grupo Interdisciplinar de Pesquisa em Artes, 2008. p. 103-111. e no site di Instituto de Artes da  UNICAMP (antigo Laboratório de luz).

ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4989-8005

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