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O câncer e a travessia da alma

Luciana Barone [1]

“A alma é o começo e o fim de qualquer conhecimento. Realmente, não é só o objeto de sua própria ciência, mas também o seu sujeito” (Jung)

O que se inicia, com um diagnóstico de câncer é um processo, uma travessia cheia de obstáculos e desafios, mas que pode ser também muito reveladora, se assim o/a acometido/a permitir. O câncer deflagra uma profunda crise que o indivíduo está vivenciando e, para atravessá-la, além dos cuidados físicos, pode ser também muito benéfico que o/a paciente volte seu olhar para dentro, na busca de compreender qual o chamado da alma para aquela crise, e, ao longo do processo, como ressignificar esta vivência tão profunda, que mexe com a vida toda da pessoa: seu trabalho, suas relações profissionais, pessoais, familiares. Dependendo do avanço da doença e de sua gravidade, quando do diagnóstico, muitos aspectos da vida poderão entrar em jogo e até mesmo a própria vida. A questão, do ponto de vista psicológico, é como cada um/a lida com esta ideia da aproximação da morte, essa visita que ela nos faz, nos recordando da finitude da nossa vida.

 

A palavra “patologia” vem de pathos, do grego, que significa “paixão”. A de Cristo envolvia a crucificação, implicando sofrimento. Mas path, em inglês, é “caminho”. A doença traz um percurso a ser trilhado pelo paciente, podendo ser transformada num caminho de redenção, de superação.

 

Sendo crônica, a doença se relaciona com Cronos, o titã que personificava o tempo, que vem nos pedir uma outra relação consigo, paralisando-nos, em certos aspectos da vida, nos permitindo aprofundarmo-nos em outros, em busca da enantiodromia, da auto-regulação. Da união de Filira com Cronos, nasceu o centauro Quíron, que herdou do pai a sabedoria, os conhecimentos de magia, astronomia e o dom de prever o futuro. Educado por Apólo nas artes e também por Ártemis, Quíron foi ferido por Hércules, enquanto este lutava contra a hidra. Desta ferida não pôde se curar, o que o tornou vulnerável, apesar de sua imortalidade. Tal fato, no entanto, propiciou que tivesse empatia com a dor alheia, podendo aplicar sua sabedoria com outros feridos, o que fez dele um grande curador.

 

Normopatia

 

Embora seja uma doença crônica, o câncer pode ser fruto de uma vida extremamente adaptada. A completa adaptação à normatividade do meio leva a quadros de doença. Wolf Buting (apud DAHLKE, 2007, p.70) aponta para uma normopatia nos pacientes oncológicos, em que há uma repressão de impulsos vitais (ou seja, onde há uma vida não vivida). O/A paciente fica tentando cumprir seu dever como filho/a, pai/mãe, profissional, em detrimento de suas necessidades individuais. Como nos lembra o autor de A Doença como linguagem da alma, Rudiger Dahlke (2007), os/as acometidos/as podem ser pessoas extremamente adaptadas, que tentam viver de modo desapercebido, adequando-se às normas e jamais incomodando. Por evitarem a exposição, ignoram os desafios de seu próprio crescimento, evitando aquilo que possa romper com sua couraça defensiva. Pessoas que não costumam dizer “não”, ou que assumem responsabilidades que não seriam as suas. Na falta de um sentido interno, dão um sentido externo a suas vidas (por dentro, falta de sentido e depressão, por fora vários êxitos profissionais por exemplo). O/A paciente precisa fazer algo próprio de sua vida. A vida reprimida pode irromper como doença, através dos sintomas, ao mesmo tempo que se interrompe a atividade defensiva do corpo. Jeanne Achterberg (1996), ao colocar o câncer no hall das doenças autoimunes, indica que estas são doenças em que o sistema imunológico já não consegue discriminar o eu do não eu. Ocorre um auto ataque, sem diferenciação.

 

Dahlke (2007) traz a imagem de que o câncer seja a expansão que mergulhou nas sombras do corpo (porque se expande, sem temer sequer a morte) e que, consequentemente, para se alcançar um equilíbrio perante este mergulho polarizado, deve-se de expandir a consciência, na direção da infinitude e da imortalidade da alma. O autor defende que é a atitude interna que define o prognóstico, tendendo para o fim da vida ou para a iniciação de uma nova etapa com outras leis.

 

Toda a criatividade desenfreada que se expressa no acontecimento cancerígeno deve ser levada para o espaço vital consciente, do âmbito corporal para o âmbito anímico espiritual. As mutações estão à espera e requerem coragem. Elas têm mais sentido em qualquer outro lugar que não seja o corpo (...). Talvez seja preciso renunciar à função altamente especializada que se assumiu na sociedade, na firma ou na família, para voltar a se tornar um ser humano com necessidades próprias e ideias malucas (idem, p.85).

 

A importância de ressignificar

 

Jung abordou o mito do significado, pois a vida de um indivíduo tem que fazer sentido, ser plena de significado para ele. Em Memórias, Sonhos e reflexões, Jung (1967, p. 147) afirma que a “falta de significado inibe a plenitude da vida e, portanto, equivale à doença”. O significado tem, portanto, um poder curativo inerente e é a consciência quem o elabora.

 

A consciência do homem também é uma função espiritual. (...) [Ela] representa um papel criativo na evolução e diferenciação das imagens arquetípicas de Deus. Podemos dizer que ele realiza o milagre de uma ‘segunda teogonia’. Como co-criador da realidade exterior e interior, ele e sua consciência têm uma ‘responsabilidade cósmica’. (JAFFÉ - referindo-se a Jung - 1995, pp. 139-140).

 

A tarefa do homem é ampliar a consciência geral, criando a consciência individual. Um dos modos de ampliar a consciência sobre o tema do câncer, pode ser através do que nos ensinam os mitos. Um dos mitos relacionado ao câncer é o de Hércules, em seus doze trabalhos, que correspondem às tarefas arquetípicas do zodíaco, segundo Dahlke (2007, p.85). Quando está lutando com a Hidra, Hércules é mordido por um terrível caranguejo, com o qual luta e que acaba aniquilando. O/A paciente de câncer também trava uma luta com o caranguejo. Embora física, esta luta talvez possa simbolizar também um conflito interno. Cabe então analisar, qual a postura mais adequada para a batalha que, muitas vezes pode ser, primeiramente, aceitá-la, para enfrentar a jornada que está pela frente. E isso pode significar atentar ao pé de trás. Na busca pela enantiodromia, pela autorregulação, talvez o Self esteja fazendo ao/à paciente um convite à revisão. Cronos o/a paralisa por meio do caranguejo que é aquele que anda para trás.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

    Hércules sendo atacado pelo caranguejo enquanto luta contra a Hidra, em quadro de Conenelis Cort (Hercules killing the lernean Hydra)

Assim como Hércules, todo/a herói/heroína atravessa uma jornada que conta com estas etapas:

 

1. Saída do mundo conhecido e descida às trevas do inconsciente em busca do poder da vida. É preciso abandonar o ambiente conhecido (familiar) para lutar, visando a integração dos opostos. Nesta luta, a personalidade entra em contato com um poder sombrio inconsciente para aprender a lidar com ele. O inimigo a ser confrontado é aquilo que tem de ser morto para que se possa abrir espaço para o novo. Vale ressaltar o que coloca Erich Neumann (2021, p. 11): “Não é a luta contra o mal — e essa é a verdade amarga de nossa experiência —, mas, na melhor das hipóteses, a luta contra a ruína causada pelo mal é que põe em movimento o homem moderno”. O mal não pode ser erradicado, uma vez que é inerente à humanidade. A luta é contra a destruição que o mal não reconhecido provoca.

 

2. Ao retornar, a transformação a nível pessoal que o herói/heroína viveu, ressoa em toda coletividade. Há um compartilhar. Esta etapa equivale à ampliação da consciência que mencionamos acima: é através da transformação pessoal que o indivíduo amplia a consciência de toda coletividade. O inimigo, personificação da doença, é assim, um chamado à integração.

 

A integração pode se dar por meio do mergulho no mundo imaginal e sua magia. A doença pode ser um convite ao mundo dos mistérios. É o/a curador/a do/a próprio/a doente que é despertado/a no caminho da integração. Nos processos de cura das tradições xamânicas, o xamã torna-se, em sua consciência ampliada, a pessoa doente.

 

O curador não tenta fazer o que quer que seja para aquele que procura a cura; simplesmente tenta unir-se à pessoa, fundir-se e tornar-se um só com ela. Uma dedicação ou um amor imenso e profundo, dirigido àquele que vai ser curado, é o cerne do mecanismo de cura. (ACHTERBERG, 1996, p.32).

 

A doença como caminho iniciático: o que as tradições ancestrais têm a nos ensinar?

 

O Saman (palavra russa, da qual deriva o xamã) é o mais antigo profissional do mundo. Segundo Mircea Eliade (2002), xamãs eram classificados como sacerdotes, médicos, mágicos, feiticeiros, exorcistas, líderes políticos, psicóticos e charlatães. Deles, portanto, descendem os médicos e sacerdotes modernos.

 

Os xamãs acessam estados extáticos ou de consciência ampliada, durante os quais ascendem ao céu ou descem ao mundo subterrâneo da imaginação. A meta da viagem xamânica é obter poder ou conhecimento para ajudar a comunidade ou para curar. Segundo Jeanne Achterberg (1996), o xamanismo é considerado por Eliade e outros autores como um sistema de cura que compreende técnicas para penetrar e interpretar a paisagem da imaginação que é encontrada durante a viagem ou o ‘voo mágico’” (ACHTERBERG, 1996, pp.18-19). Há evidências arqueológicas em cavernas no sul da França de que as técnicas xamânicas têm pelo menos 20.000 anos, sendo então o método mais antigo e mais difundido de cura pela imaginação. Por perdurarem até hoje, parece evidente se tratar de práticas que apresentam resultados.

 

Temos que lembrar que a prática da medicina nas tradições xamânicas não objetiva prolongar a vida nem evitar a morte, sendo a cura, uma questão espiritual:

 

A doença é por ele [pelo xamã] considerada originária do mundo espiritual e dele adquire seu significado. O propósito da vida, em si, é ser doutrinado e iniciado nas regiões visionárias do espírito e estar de acordo com todas as coisas da terra e do céu. Perder a própria alma é a ocorrência mais grave de todas, pois isso eliminaria qualquer significado da vida, agora e para sempre. Assim, o objetivo de boa parte da cura xamânica é, basicamente, nutrir e preservar a alma, bem como protege-la de vagar eternamente’ (idem, p.23).

 

O tratamento xamânico enfatiza o aumento de poder da pessoa doente, e apenas secundariamente foca-se no agente que produziu a doença, pois é somente quando a camada protetora natural de uma pessoa desenvolve uma fraqueza que males externos podem afetá-la.

 

Imaginar e simbolizar

 

Xamã e paciente são transportados/as pela medicina tradicional ao estado de consciência necessário e o uso de objetos, animais de poder ou símbolos são mais importantes para abrir o mecanismo de cura nos/as pacientes, do que para o próprio xamã, que é treinado espiritualmente para este processo.

 

Jung, em A Energia Psíquica (2008, p. 54), refere-se à magia do homem primitivo, como instintiva e criadora de analogias:

 

Uma cerimônia é mágica quando (...) permanece no estado de expectativa. Neste caso, a energia é canalizada para um novo objeto e produz um novo dinamismo que, por sua vez, permanece mágico enquanto não realiza trabalho efetivo. A vantagem que advém de uma cerimônia mágica é que o objeto recém ocupado adquire uma possibilidade de atuação em relação à psique. Por causa de seu valor, ele produz um efeito determinante e estimulador sobre a imaginação, de sorte que a mente é fascinada e possuída por ele por um tempo prolongado.

 

Colocando a magia como mãe das ciências (idem, 55), Jung ressalta que há um caráter lúdico na relação mágica com o objeto que permite ao indivíduo perceber em torno dele coisas que de outra forma não perceberia. O símbolo e a metáfora, como bem exemplificaram os alquimistas, são os meios inestimáveis de utilizar o fluxo instintivo do processo energético para uma produção efetiva de trabalho.

 

Por fim, o/a doente que faz sua travessia, pode ter seguido seu chamado iniciático, caso tenha tido sua vocação revelada em uma crise física aguda. Segundo Joan Halifax (apud ACHTERBERG, 1996, p.27), a “doença torna-se, assim, o veículo para um plano mais elevado de consciência”. Achterberg coloca que qualquer encontro com a morte, “por mais breve que fosse e do qual a pessoa emergisse tendo conhecimento daquele encontro, bem como a imunidade especializada, deveria ser considerado um claro chamado para curar” (ibidem). Não se trata de querer encontrar uma regra no processo altamente individual que é o da travessia de uma doença crônica, apenas de ampliar para os convites que ela possa estar fazendo que sempre serão simbolizados pelo/a próprio/a paciente que faz a travessia.

 

Referências

 

ACHTERBERG, Jeanne. A imaginação na cura: xamanismo e medicina moderna. Trad. Carlos Eugênio Marcondes de Moura. São Paulo: Summus, 1996.

 

DAHLKE, Rüdiger. A doença como linguagem da alma: os sintomas como oportunidades de desenvolvimento. Trad. Dante Pignatari. São Paulo: Cultrix, 2007.

 

ELIADE, Mircea. O xamanismo e as técnicas arcaicas do êxtase. Trad. Beatriz Perrone Moisés e Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

 

JUNG, Carl Gustav. Memória, sonhos e reflexões (Compilação e prefácio de Aniela Jaffé). Trad. Dora Ferreira da Silva. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1963.

 

JUNG, Carl Gustav. A Energia Psíquica. Trad. Mateus Ramalho Rocha. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008.

 

JAFFÉ, Aniela. O mito do significado na obra de C. G. Jung. Trad. Daniel Camarinha da Silva e Dulce Helena Pimentel da Silva. São Paulo: Cultrix, 1995.

 

NEUMANN, Erich. Psicologia profunda e nova ética. Trad. João Rezende Costa. São Paulo: Paulus, 2021.

[1] Luciana Barone tem pós doutorado em Theatre and Performance pela Goldsmiths University of London, é Doutora em Multimeios pela UNICAMP. Especializada em Psicologia junguiana pelo IJEP/FACIS e Educadora do Movimento somático pela School for Body-Mind Centering. É docente de atuação no Bacharelado em Artes Cênicas da UNESPAR e do Programa de Pós Graduação em Cinema e Artes do Vídeo da mesma universidade. Texto originalmente publicado no site do IJEP (2022).

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